8 de maio de 2009

As políticas migratórias europeias: a institucionalização da xenofobia

Estreamos a secção de artigos informativos e de análise, com um artigo de Lucile Daumas, activista da Attac e do CATM em Marrocos, sobre o Pacto de Imigração e Asilo, aprovado durante a Presidência Francesa da União Europeia, e as suas implicações na evolução das políticas migratórias europeias.

As políticas migratórias europeias: a institucionalização da xenofobia

por Lucile Daumas

Desde a assinatura em 1992 do tratado de Maastricht, a harmonização das políticas europeias em matéria de migração, é vista como uma necessidade - a generalização dos vistos à entrada da Europa não foi considerada suficiente para a proteger contra uma imigração considerada demasiado massiva e indesejável. Mas foi preciso mais de 15 anos para chegar, em Novembro de 2008, à assinatura do Pacto europeu sobre Imigração e Asilo. A questão era complexa: era preciso conciliar as necessidades, diferentes segundo os paísesi, as abordagens e tradições culturais divergentes da relação com o estrangeiro e "tomar a contra mão dos valores que a Europa fixou a si mesma no fio da sua história (nomeadamente em matéria de asilo)"ii. Este pacto abafa determinadas realidades dos recentemente chegados ao seio da Europa alargada, por exemplo os Romenos, que gozam da liberdade de circulação mas são alvo de ostracismo e de expulsões massivas sistemáticas.

Todavia, ao longo destes quinze últimos anos, muito foi feito em matéria de política migratória europeia comum. Da cimeira de Tampere (Finelândia) em 1999 à de Paris em 2008, uma série de instrumentos, directivas e programas dotaram a União Europeia dum quadro jurídico e operacional para controlar os fluxos migratórios, aferrolhar as fronteiras europeias e lutar contra a imigração clandestina que é sua consequência directa: criação da agência Frontex de vigilância das fronteiras, pressões sobre os países do sul para aceitar a readmissão dos seus nacionais e a co-gestão dos fluxos migratórios, directiva de Retorno,... O efeito desse aferrolhamento, dramático, foi a hecatombe aos milhares sobre as rotas migratórias e nas fronteiras, o enriquecimento das máfias que se implantaram nos espaços de ilegalidade e os sofrimentos indizíveis para os viajantes e, ainda mais para as viajantes.

O pacto europeu sobre a imigração e o asilo, adoptado em Paris em 16 de Outubro de 2008, faz prevalecer a visão francesa, utilitarista e securitária, da migração e baseia-se em três ideias fortes: a luta contra a imigração clandestina, a organização de uma migração laboral flexível e conjuntural e um partenariado com os países de origem. No que concerne à migração laboral, trata-se de satisfazer, de forma flexível, as necessidades de mão-de-obra dos países europeus, atendendo ao envelhecimento da sua população e em função do seu crescimento económico. Agora convencida de que a imigração zero é ilusória, a União Europeia contorna o direito do trabalho ao negociar, desde os países de partida, contratos de trabalho que estão bem aquém dos padrões em vigor nos países de acolhimentoiii. Isso permite - legalmente – fazer face à concorrência exacerbada ou manter lucros excedentes graças a uma mão-de-obra escrava e mal paga. A generalização de uma imigração circular (que não tem vocação para fixar-se de forma durável na Europa) é uma outra forma de reforçar a precarização de todos os trabalhadores, sejam estrangeiros ou não. Enfim, o silêncio do pacto em relação ao trabalho clandestino (apenas o migrante irregular está em causa) leva a pensar que o trabalhador clandestino tem ainda pela sua frente longos dias de exploração. É provável que, em tempos de crise, a retórica sobre a imigração selectiva continuará – pelo menos uma parte – a ser letra morta e que prevalecerão sobretudo as clausulas referentes à protecção das fronteiras, a limitação do reagrupamento familiar e a expulsão de estrangeiros indesejáveis. Os Estados europeus colocarão em funcionamento um Sistema comum de informação sobre os Vistos ligando todos os consulados, os meios da agência Frontex serão reforçados, os identificadores biométricos serão generalizados.

Numa palavra, a Europa transforma-se mais do que nunca em fortaleza, tornando totalmente caduca a afirmação de que “todo o estrangeiro perseguido tem o direito de obter ajuda e protecção sobre o território da União europeia”. Para isso, era necessário que o requisitante de asilo penetrar nesse território, coisa que se tornou improvável pelo aferrolhamento das fronteiras europeias e porque a Europa exportou – nomeadamente para o continente africano – a sua cultura de vistos e de fronteiras, que obstaculiza as circulações intra-continentais. O Alto-comissário para os Refugiados ofereceu os seus serviços abrindo os gabinetes tampão nos países ribeirinhos contíguos à União a fim de aliviar a impossibilidade, imposta a estes refugiados, de poder aceder ao país da sua escolha para requisitar asilo.

Quanto à questão do acolhimento dos migrantes e das suas condições de vida em território europeu, ela é simplesmente deitada pela janela fora. Declarando pretender favorecer a integração, o Pacto contenta-se em afirmar que esta assenta no equilíbrio entre os direitos e os deveres dos imigrantes, limitando os factores de integração à aprendizagem da língua do país de acolhimento (condição colocada pela França para o reagrupamento familiar) e à posse de um contrato de trabalho.

Quer seja em matéria de direito do trabalho (generalização dos contratos de curta duração e do trabalho temporário), os direitos das pessoas (a uma vida familiar, à livre circulação, à educação, à saúde, etc.) o direito de estada (cada vez mais atado à duração do contrato de trabalho), a uniformização das regras à escala europeia em matéria de migração faz-se sobre o mais pequeno denominador comum em matéria de direitos e funciona dois a priori extremamente perigosos: o a priori xenófobo que faz de todo o estrangeiro um indesejável até prova em contrário e o a priori utilitário que vê a circulação das pessoas apenas como um meio de satisfazer as necessidades europeias em matéria de emprego. Nesses dois casos, o estrangeiro encontra-se sob suspeita (de terrorismo, de insegurança, de ladrão de emprego ou de serviços sociais) e é susceptível de ser rejeitado ou expulso.

Não é por isso de admirar que o Pacto europeu sobre imigração não faça nenhuma referência aos textos internacionais sobre os direitos humanos, os direitos económicos, sociais e culturais e ainda menos a Convenção sobre a protecção dos direitos dos trabalhadores migrantes e dos membros da sua família, que nenhum dos países europeus assinou. Fazendo de todo o estrangeiro um migrante clandestino potencial, o Pacto acentua ainda mais a divisão da população entre aqueles que têm o direito de circular e aqueles que não o têm, entre aqueles que podem conhecer outros países, outras culturas, outras pessoas, visitar a sua família, e aqueles que não podem. A maneira como é gerida a circulação de pessoas é certamente o cerne do desmantelamento generalizado dos direitos e protecções das sociedades e dos indivíduos no decurso da era do liberalismo mundializado.

Mas os Estados europeus não ficam por aí. Eles implicam os países do Sul na implementação desta xenofobia institucionalizada, encarregando-os de se virar contra os seus próprios cidadãos e de se fechar aos seus vizinhos, enquanto os envolvem no recrutamento de trabalhadores destinados à migração selectiva ou circular. A questão migratória, e nomeadamente a luta contra a migração clandestina, será objecto de um capítulo incontornável dos acordos de parceria económica, tanto no quadro euro-mediterrânico, tanto no quadro dos países ACPiv, e muitas vezes constitui uma condição para realização de projectos ou para a concessão de empréstimos. Estes acordos, que organizam a drenagem dos recursos dos países africanos (essencialmente através dos mecanismos da dívida e do livre comércio), prevêem também os mecanismos de retenção domiciliária das populações que os mesmos acordos vão afundar no desemprego, na pobreza, na fome. Os parceiros são intimados a aferrolhar as suas fronteiras, a travar os seus cidadãos e estrangeiros de país terceiros, a readmitir os seus nacionais expulsos, e aqueles que tenham passado pelo seu território. Para além disso, são encorajados e muitos já o fizeram – a se dotar de leis sobre o estatuto dos estrangeiros em que se encontrem no seu território.

Os países da África do Norte transformaram-se, assim, numa verdadeira armadilha para os migrantes vindos dos países do Sul do Sara. As mortes nas grades de Ceuta e Mellila em Outubro de 2005 e a expulsão de migrantes para o deserto colocaram o foco das atenções sobre as condições lamentáveis dessa cooperação no controlo das fronteiras. As terríveis condições que reinam nos campos de detenção abertos pelo regime líbio, as modalidades particularmente violentas e desumanas das expulsões massivas de migrantes não impedem a continuação da gestão concertada dos fluxos migratórios com a Líbia. Nada faz parar a União Europeia na prossecução de uma política de co-gestão de uma guerra tão ineficaz como desumana.

O alinhamento de todos os países europeus numa política migratória utilitarista e xenófoba assenta numa visão da migração como instrumento de regulação dos mercados de trabalho que considera o migrante como uma mercadoria de importação/exportação. Deste modo, o Estado liberal contradiz o seu discurso sobre a auto-regulação dos mercados mostra um intervencionismo a todos os instantes. Mas isso não funciona. Porque nessa matéria há dados importantes que foram esquecidos. A mão-de-obra não é uma mercadoria que desaparece após o seu consumo, que possamos armazenar ou deitar no lixo. Contrariamente às mercadorias, a mão-de-obra imigrante é dotada de livre arbítrio. Em última análise, seja qual for a embalagem apresentada, é ela que decide os seus movimentos. As revoltas de Lampedusa vieram recordá-lo. Não se pode controlar a produção porque não são as necessidades do mercado que entram em linha de conta. É da responsabilidade do indivíduo decidir de partir ou de reentrar. Isto explica parcialmente o fracasso das ajudas ao retorno, tentadas aqui e lá. Enfim, é dotada de todos os atributos do ser humano: não tem apenas a necessidade de trabalhar e de renovar a sua força de trabalho, mas também de amar, de fundar uma família, de viver… coisas que pouco têm a ver com uma gestão racional de um mercado.

Isto é o que recorda com humor o movimento Les amoureux au ban publicv, que tenta – às vezes com sucesso – impedir as separações dos casais ou favorecer as suas uniões, quando a imbecilidade administrativa ignora um elemento tão pouco burocrático como o amor! A rede Educação sem Fronteiras tem recordado que o migrante não é apenas um trabalhador mas também um pai, uma mãe, uma criança, tal como o são todos os seus camaradas de classe. Essas redes reintroduziram a dimensão humana na abordagem do feito migratório. Outras redes se constituíram para desafiar as fortalezas erguidas em torno da Europa, tecendo solidariedades entre os continentes. As Redes Migreuropvi ou No Border organizaram os combates à escala europeia, estendendo a mão aos militantes vindos do Sul ou do Este. A rede euro-africana não governamental sobre migraçõesvii, criada em Rabat em 2006, trabalhou no sentido de aprofundar as rejeições partilhadas e as propostas comuns, a organizações europeias e africanas, em matéria de migrações. Permitiu uma consciencialização consistente dos militantes da África Negra e do Magreb quanto à sua africanidade comum, e criar laços com as organizações europeias. Esse trabalho de colocar em comum foi continuado aquando da contra-cimeira de Lisboa, em Dezembro de 2007, e depois com a mobilização Des ponts pas des mursviii, que alargou ainda mais a rede e resultou na apresentação de recomendações alternativas à II Cimeira governamental euro-africana sobre as migrações, que aconteceu em Novembro de 2008 e da qual falamos acima.

No centro dessas recomendações está a reivindicação da liberdade de circulação para todos, única garantia de igualdade de direitos entre os cidadãos, independentemente da sua origem geográfica ou social, mas também condição para um reequilíbrio, no conflito entre capital e trabalho, em favor dos trabalhadores e portadora do reinvestimento da dimensão humana no debate sobre as migrações.

Tradução de Lídia Fernandes e Celine Beutin

A versão original do artigo está disponível em:

http://www.cadtm.org/spip.php?article4302

i Assim, a então verificada frouxidão da Espanha e da Itália no controlo das suas fronteiras Sul foi por diversas ocasiões estigmatizada pelos outros governantes europeus, nomedamente o francês, tal como foram estigmatizadas as regularizações massivas levadas a cabo pela Espanha, quando Zapatero assumiu o cargo de Primeiro Ministro.

iiImmigration : l’Europe reste-t-elle une terre d’accueil?, Alix Zuinghedau, Euros du village, 15 janvier 2009. http://www.eurosduvillage.eu/IMMIGRATION-L-Europe-reste-t-elle,2296

iii Um exemplo gritante: o recrutamento, para a agricultura na Espanha, França, Itália, de trabalhadores sazonais com contratos que não respeitam nem os níveis salariais, nem os mínimos horários, e impondo condições discriminatórias inadmissíveis (ser casado/a, ter filhos, por exemplo), sem outra justificação senão a garantia do retorno ao país no fim do contrato.

iv Africa-Caraíbas-Pacífico

v Les amoureux au ban public, http://amoureuxauban.net/, trata-se de uma organização/movimento de casais mistos para a defesa do direito a ter uma vida familiar, que na sua tradução literal significa “Os namorados perante a justiça publica”. O nome joga com as palavras: “ban public” (justiça pública) e “banc public”, banco público, referência à famosa canção “Les amoureux des bancs publics” do Georges Brassens, que promovia o direito dos jovens pares a se amar publicamente.

vi http://www.migreurop.org

vii http://www.manifeste-euroafricain.org/

viii http://www.despontspasdesmurs.org/

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